"Deixar tudo para trás"
..«Quase sempre no limite da sua capacidade, a média da faixa etária das mulheres que passam pela casa abrigo situa-se entre os 30 e os 40 anos, a maior parte com o 4º ano de escolaridade. Chegam, na sua maioria, desprovidas, literalmente, de tudo. Não só porque, apesar de serem as vítimas, são elas que têm de deixar para trás toda uma vida, o meio onde tinham os amigos, a família, o emprego, mas porque, na grande parte dos casos, não têm sequer competências pessoais, sociais, parentais e profissionais.
“Algumas trazem, mesmo, psico-patologias acentuadas, nomeadamente quadros depressivos ou até distúrbios de personalidade”, assume o psicólogo José Pinto. À chegada é, por isso, feito, de imediato, um diagnóstico para avaliar se vêm em situação de crise ou não. Só depois é trabalhado em conjunto um plano de intervenção, adequado a cada caso e às necessidades e objectivos de cada mulher, tendo a consciência de que a questão cultural é sempre aquela mais difícil de trabalhar e de mudar.Como qualquer casa, também esta tem regras de funcionamento a cumprir. Regras que conhecem logo quando chegam. “Explicamo-lhes que têm de fazer na mesma a higiene do quarto, da casa de banho, que têm de ser elas a tratar das suas roupas, que têm tarefas a cumprir e que são elas na mesma as responsáveis pelos filhos”, explica a educadora social, Nídia Monteiro. Isto, porque poucos são os casos - admitem - que chegam à casa com noções, inclusive, de gestão doméstica: “Não sabem, por exemplo, procurar os produtos mais adequados, a alimentação mais adequada”.
Ali, recomeçam, por isso mesmo, do zero. Vítimas de um isolamento imposto pelo agressor, têm, muitas vezes, até, de aprender a comunicar com os outros na própria casa: “Vê-se muito isso por exemplo na hora do jantar, quando se isolam e quase nem olham umas para as outras. A partir do momento em que são controladas a todos os níveis deixam realmente de saber conviver”. Muito importante é - frisam - não fazer juízos de valor. A vergonha ainda é um obstáculo difícil de ultrapassar para as mulheres vítimas deste que é já considerado um crime público e, por isso, não importa as vezes que a mulher já tentou sair de casa. “Se já saiu uma, ou duas, ou três vezes e regressou a casa não importa.
Não têm de ter vergonha, porque a decisão de sair de casa e de abandonar um marido ou um companheiro agressor não é realmente fácil”. Uma situação que Manuela conhece bem... "Em duas horas saiu de casa, mas a ideia de voltar leva-a a procurar o companheiro, no Natal de 2006. A “gota de água” num copo que acabou, assim, por transbordar de vez. Estive com ele unicamente dois dias, mas foi o suficiente para ver que me tinha enganado ao voltar. Não me bateu, mas maltratou-me muito verbalmente e foi aí que entendi que as coisas não tinham mais volta”, recorda Manuela.Na casa abrigo teve o seu filho e está a aprender a voltar a viver. Mesmo com a consciência de que recomeçar não é realmente um processo muito fácil: “Tive de encarar a realidade e contar às pessoas o que se estava a passar e que, afinal, não acontece só ao vizinho do lado”.»